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Lani Romée Major
Registro : Lanisso : Humano : Bard 7 / Playwright 7 / Boxer 5 / Iron Chef 5 / Ace Attorney 3
| Assunto: A Lua de Cada Madrugada Dom Fev 07, 2010 7:21 pm | |
| Inspirado pelo talentoso Vifibi, resolvi também relatar as crônicas que compõem a unidade da minha vida. Eis, então, meu próprio relato auto-biográfico - Os capítulos sairão conforme a conveniência e oportunidade do Autor. CAPÍTULO I: Êxodo - Spoiler:
Betinho respirava pesado, sentia o coração bater forte. Protegendo a boca com as duas mãos apertadas, reuniu toda a força de vontade que dispunha na desesperada tentativa de manter-se imóvel. Não carece dizer: tremia violentamente sob os olhares da Virgem que o observava da coroa de uma igreja.
Escondido, jogado em meio a entulhos displicentemente largados em uma rua amaldiçoada no bairro da Sé em São Paulo, atentava-se a escutar através de reentrâncias de seu esconderijo qualquer pista de gemidos da fome negra. Betinho também sentia a dor dos famintos, o castigo a quebrar-lhe a alma, mas sua preocupação não residia no pedaço de pão que teimava em reinar os seus sonhos: Aquela noite o menino era caça, não caçador.
Seu ritmo ofegante teve fim abrupto: A luz oscilante do poste que iluminava a esquina denunciou sombras retorcidas que dançavam a valsa dos mortos - o trote custoso da carne desalmada, chafurdando o asfalto à caça de recompensas transitórias, como arautos de Mefistófilis a buscar os encantos de Fausto.
Viu a sede incorporada à saliva gotejante dos demônios que se arrastavam em sua direção. Fechou os olhos em um ímpeto, e invocando a defesa fantasiosa da infância, desejou tornar-se tão invisível quanto agora eram seus algozes. Os gemidos de ansiedade dos monstros perdiam-se à rouquidão de sua indigência, tamanha a sua proximidade. Mesmo em sua inocência de menino, conformou-se com uma conclusão digna do mais culto discípulo do mal du siècle. Já estava morto.
No mundo das trevas onde Betinho aguardava a certeza de seu fado, o que lhe trouxe de volta à concretitude de sua pavorosa situação foram duas súbitas notas - o corte do ar, seguido imediatamente por um estalo seco. Esse último ruído remeteu-o a uma época mais feliz, jantares de família, a mordida no biscoito, o repartir de ossos de um assado. Abriu os olhos.
O repartir de ossos.
Levantou o olhar e ali estava à sua frente a figura majestosa de um rapaz bonito, ainda que de vestes surradas pela agruras de uma viagem perene: Em uma mão segurava uma espada enferrujada; na outra, um copo largo de cerveja escura. Seu tênis allstar verde-encardido contava com novo adorno: A cabeça dividida de um zumbi. Era a salvação concedida pela Virgem.
Com um impulso, o rapaz esticou o tecido temporal sem qualquer resquício de respeito às leis naturais da Física: Cuspiu o cigarro nos olhos de um segundo monstro, e em um movimento retorcido a imitar o salto de um corvo, fatiou-lhe o torso com dois golpes. Um após outro, intercalada ou simultaneamente, os corpos podres chocavam-se contra o asfalto, completamente desmembrados pelos ataques calculados do espadachim.
Derrotado o exército, o rapaz inominado guardou a espada na cintura e construiu pacientemente um grande morro com os restos mortais de seus inimigos. Observou a melancolia daquela cena grotesca, verdadeira representação distorcida de um quadro de Cézanne, e, dando o último amargo gole da cerveja escura, ateou fogo à mórbida fogueira com o mesmo fósforo que usara para acender um cigarro.
Andou até Betinho e sentou-se ao seu lado.
"Você é Betinho, estou correto?"
O garoto tomou um susto ao reconhecer aquela voz.
"Você é o meu vizinho! O Escritor!"
O rapaz deu uma gostosa risada, talvez a única sincera em toda a sua vida, e, soltando fumaça pelas narinas, respondeu.
"Eu não sou Escritor. Sou apenas Lani Romée." CAPÍTULO II: Gênese - Spoiler:
A orquestra do crepúsculo cantava os últimos acordes na floresta de asfalto que é São Paulo. Vigilante, Lani fechou as cortinas de seu gigantesco flat adornado de televisores widescreen, home theater 5.1, american bar e uma magnífica varanda. O apartamento seguia todas as tendências da art noveau, e elegantes fotos branco-e-preto temperavam as paredes.
Andou vagarosamente até o balcão do american bar, onde Betinho estava terminando de devorar o curso de cinco pratos preparado pelo anfitrião: Consomê de cogumelos com perfumes da Amazônia, steak tartare de salmão defumado em redução balsâmica, confit de pato com espuma de banana, ossobuco de vitela com risotto de sálvia e emulsão de parmesão, mil folhas de canela com sorbet de maçã e tomilho.
"Estava gostoso?" - Perguntou Lani.
"Estava, Lani. Gostei muito. Não sabia que podiam existir comidas tão gostosas. Como você foi capaz de preparar tudo isso sozinho em apenas oito minutos?"
"É como jogar Tetris."
Betinho calou-se, satisfeito com a resposta. O menino sabia que Lani Romée era o melhor jogador de Tetris em todo o Universo, disputando campeonatos municipais, estaduais, federais e até internacionais. Apesar disso, o rapaz não deixava de lado a educadíssima humildade, motivo pelo qual tão poucos conheciam seus feitos. Tetris, como todo mundo sabe, significa sexo. Perdido em sua filosofia, não percebeu que Lani apagava todas as luzes e trancava todas as portas. Chegava o momento sombrio, horário em que os zumbis atacavam com maior voracidade.
Lani sentou-se no sofá, o Hofner 500/1 assinado por Sir Paul McCartney no colo, interpretando belíssimos solos jamais reproduzidos em toda a história ocidental. Ao ressoar da última nota, Betinho que até então escutava a música com uma admiração jungiana, perguntou timidamente:
"Lani... Me conta uma história?"
Lani virou-se para o menino, e na penumbra, dirigiu-lhe um olhar terno:
"Não."
Acendeu um cigarro, e ante os protestos do novo protegido, declarou:
"Escuta, Betinho. Já disse Nietzsche: Quando se olha para o abismo, o abismo olha de volta para você. Existem verdades que são melhor guardadas para si mesmo, pois não pertencem a mais ninguém."
"Mas, Lani, eu não tenho o que fazer."
Lani refletiu por um momento sagrado. Dedilhando notas atonais no baixo semi-acústico, decidia se era prudente abrir a caixa de Pandora. Sob a luz de um monólogo interno cru, áspero, acreditava que sua história era Eurídice a escapar por entre seus dedos no momento em que olhasse para trás. Valeria a pena rasgar suturas ainda não cicatrizadas em razão do entretenimento de um menino que não seria capaz de dispor do discernimento para entendê-la?
"Betinho, não me sinto confortável revisitando os quartos trancados de minha história. O que quero dizer é que vejo meu passado como se fosse minha Eurídice, e..."
"... Tooodo mundo já entendeu" - retrucou Betinho - "Não precisa ficar citando mitologia clássica como um pernóstico."
Lani Romée achou aquela observação de Betinho uma grande verdade, e por isso resolveu contar sua história.
"Pois bem, então vamos começar por uma história de amor... Já aviso que não é uma história bonita como um conto de fadas, mas feia, realista, com todas as verrugas à mostra. Prepare-se.
Era uma vez uma moçoila chamada Valentina. Vivia em uma cidade à beira do rio e era admirada por todos os rapazes da região. Não lhe faltavam admiradores, mas como Brunhilda em o 'Anel de Nibelungo' de Wagner, impôs uma regra: Casaria-se apenas com aquele que conseguisse derrotá-la em um combate justo de Kung Fu.
Sua regra pessoal causava muito transtorno aos pretendentes, pois não só era ela exímia artista marcial, como também a melhor entre homens, mulheres e diabretes de fogo que a desafiavam. Derrotá-la era missão verdadeiramente utópica, e os duelos matrimoniais promovidos por Valentina tornaram-se patrimônio cultural nacional sob a égide da União. Foram até tombados à época.
Eis que certa noite estava Valentina a se banhar no rio sob a luz do luar. Um luar como esse que está brilhando aí fora. À margem apareceu um rapaz elegantíssimo, trajando um terno branco, o chapéu fedora de lado no topo da cabeça. Desprevinida, a artista marcial rapidamente escondeu suas vergonhas ao enrolar uma toalha em seu corpo, e atacou-o impiedosamente com chutes do tigre voador e socos da grua centenária. Para sua surpresa, o rapaz do terno branco foi capaz de aparar todos os golpes com habilidade sublime, e como se a acompanhasse em um samba macabro, pôs-se a enfrentá-la na divina arte do Kung Fu.
O duelo durou noites seguidas e entrou para as lendas folclóricas da região. Encontravam-se sempre no bater do sino que anunciava a madrugada para lutar, sem jamais ser escolhido um vencedor. O tempo se encarregou de juntar seus corações sob as bençãos de Afrodite: Amaram-se, e... Espera, você ouviu isso?"
Com um salto, Lani deixou o baixo de lado e espiou por uma fresta da janela. Reagindo ao que testemunhara, pulou do décimo quarto andar, espada em punho. Betinho apavorou-se, sozinho em meio à escuridão, relembrando o episódio recente, Encolheu-se na posição fetal por um tempo que lhe pareceu paralisar-se. Quando estava a cair no sono, percebeu que Lani estava à sua frente, cigarro na boca, os trajes maculados de sangue coagulado, a carregar uma bela garota nos braços. Deitou-a no sofá.
Betinho só conseguiu perguntar:
"Lani? Como acaba a história?"
"Valentina Romée, minha mãe, engravidou. O rapaz de terno branco fugiu e jamais foi encontrado novamente. O desgraçado era um Boto cor-de-rosa" - Cuspindo no chão, Lani prosseguiu - "E eu o amaldiçôo com todo o ódio que brinda a minha alma." CAPÍTULO III: Levítico - Spoiler:
Betinho se jogou ao chão, consumido pela exaustão. Gotas pesadas de suor escorriam de seus poros e roupas empapadas, e as juntas de seus dedos queimavam de dor.
"Dois mil golpes em uma hora é um bom recorde pra uma semaninha de treino..." - Disse Lani ao se aproximar - "Potencial existe, mas você tem que largar a mão de ser desidioso. Isso é coisa de vagabundo. Suas últimas espadadas foram bem terceiro mundo, bem república da banana. Não gostei."
Betinho mal conseguia recuperar-se do sofrido surto de fadiga e foi incapaz de balbuciar qualquer manifestação frente à aula ministrada pelo professor de esgrima, que por sua vez reprisava no telão erros de postura do menino, desenhava esquemas táticos na lousa com canetão atômico e demonstrava didaticamente, nos pormenores dos escrúpulos éticos, a execução correta de certas manobras. Tudo isso com uma garrafa de absinto na mão, que regava a sua garganta entre uma baforada ou outra do cigarro.
Findada a aula, Lani arremessou a garrafa vazia da forte bebida francesa sobre uma pilha de outras garrafas idênticas esvaziadas naquela noite. Betinho finalmente havia conseguido se levantar e fora correndo acompanhar os passos do mestre em direção ao Flat. No caminho, enquanto fatiavam um ou outro zumbi como se fossem cenouras em meio à rua, o menino deixou escapar:
"Eu nunca imaginei que um dia fosse estudar para matar zumbis. Eu pensava que ia estudar pra virar cronista."
Lani riu:
"E isso lá é emprego de homem?" - Cortou mais dois zumbis - "Ser cronista não pode ter sido seu sonho. É que nem esses manés que dizem ter o sonho de ser advogado ou presidente, é tudo lorota. Eu quando era moleque só queria saber de empinar pipa e caçar zumbi."
Betinho ouviu aquela declaração em silêncio. Quando estavam no elevador, confessou:
"Meu sonho é meio bobo."
"Acho que todos são, se não fossem as pessoas iam conseguir realizá-los e ninguém ia ter sonho, só ambição." - Filosofou Lani.
"Eu queria fazer joguinhos de RPG que nem Breath of Fire ou Chrono Trigger."
Plém! A porta do elevador abriu e entraram no flat.
"É. Esse é um sonho bem bobo."
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"Tá, mas então qual é o seu sonho?" - perguntou Betinho, tão logo deixava o banho, ao encontrar Lani na sala a decifrar um épico córsico em latim.
"O meu? Matar zumbis, já disse."
"Não, matar zumbis é sonho de favelado. É sonho de quem não tem o que fazer. É sonho de quem não é ninguém na vida, é sonho de maloqueiro, é sonho da DONA CRETINA." - concluiu o menino, servindo-se de paella gourmet quentinha, disposta artisticamente na mesa de jantar - "Com certeza você tem algum sonho decente."
"Também era empinar pipa."
"NÃO ME TROLLA!"
Lani deixou de lado o livro e esparramou-se no sofá de couro legítimo. Acendeu um cigarrinho, abriu uma cervejinha e pensou naquela história de encarar o abismo e o abismo encarar de volta do Nietzsche. Decidiu que já que já estava ensinando até esgrima persa ao protegido, não fazia mal contar umas historinhas gruentas metidas a besta.
"Está bem, eu tenho um sonho. Mas pra explicar esse sonho tem muito chão, então é bom você prestar atenção. E tira os pés da mesa, moleque safado.
Como eu já expliquei, Valentina Romée era mãe solteira. Minha mãe solteira. Era mulher educadíssima, muito culta, e conseguiu prover o seu filho com um nível de instrução excepcional, mesmo lecionando pessoalmente em casa. Cresci ouvindo histórias do meu pai, de como ele era um cetáceo formidável, elegante, bonito, exímio artista marcial, campeão de vale-tudo, herói de guerra, jogava um bolão, fazia a melhor picanha na brasa, capitão condecorado da frota militar da Botolândia, essas coisas. Minha mãe jurava que um dia o Boto Cor-de-Rosa que havia amado iria retornar, como um messias da sedução, e que um dia seríamos uma família feliz. Ela acreditava nisso e eu acreditei também.
Outonos passaram e nem sinal dele. Por mais que minha mãe me amasse, acho que sempre que me via pensava em papai. A saudade acabou por apertar-lhe o coração sensível de mulher, adoecia. Stress, diziam uns, excesso de gordura trans, profetizavam outros, acupuntura e homeopatia aconselhavam os doutores, mas eu sabia a verdade: Era desgosto. Se tem uma raça que não esquece nunca é mulher. Mulher é rancorosa, se você irritar uma mulher ela vai até a África pra tirar satisfação. Mas chegar na Botolândia era impossível para um ser humano e ela sabia disso, e por isso não conseguiu conviver com a dura realidade de que jamais poderia pegar papai pelo colarinho e pedir reconhecimento de paternidade pela via jurídica, muito menos exigir pensão alimentícia com fulcro na Lei 5.478 de 1968. Carta precatória não vai lá também porque oficial de justiça sancionado pela União não pode ser Boto, tem que ser gente mesmo, tá no regimento interno. E isso ela não suportava.
No inverno do meu décimo segundo aniversário mamãe faleceu. Antes de dar o último suspiro, porém, ela me pegou pelas mãos e olhando em meus olhos disse:
"Filho, filhinho, mamãe só tem um desejo antes de partir. Mamãe quer vingança. Mamãe quer que você ache esse desgraçado que é seu pai e encha ele de porrada, bata nele até dizer chega; quando ele estiver cheio de hematoma na cara e implorar misericórdia é pra dar facada no peito, mordida na orelha, murro na fuça, rasteira baiana, pontapé no fígado."
Com lágrimas nos olhos concordei. Mamãe havia me ensinado Kung Fu, e embora eu não fizesse feio, àquela época não era páreo praquela mulher - mesmo assim jurei vingança. Jurei ficar forte o suficiente pra fazer aquele boto desaforado aprender que aquilo não se faz, que aquilo era coisa de gente sem vergonha, sem caráter.
O funeral de Valentina Romée foi triste, pálido. A vila toda estava presente, prestando os últimos respeitos à heroína local. O próprio céu cinzento derramava lágrimas carregadas de amargura: Chovia muito forte, cada pingo castigando nossas costas como se fossem balas. Eu soluçava ininterruptamente, não entendia porque Deus levara embora uma mulher tão honesta quando outras tão porcaria estavam vivas e eram até prefeitas de São Paulo. Era uma injustiça, e a agonia me sufocava com duas mãos geladas. Levantei a cabeça para enxugar o rosto empapado e foi quando vi.
Ali, entre o mar de ternos e tailleurs pretos de luto, uma figura trajava um indelicado branco. Soltou um sorriso sinistro ao me ver, e antes que eu pudesse reagir, sumiu."
Lani apagou o terceiro cigarro desde que começara a contar a história, e, observando a fumaça que seguia tremeluzente até o teto, completou:
"O maníaco só voltou para rir da nossa desgraça. Naquele momento eu sabia qual era o meu maior sonho: Meu maior sonho, Betinho, era vingança." CAPÍTULO IV: Provérbios - Spoiler:
Eis que estavam debruçados sobre um sem-número de recortes e publicações periódicas de páginas amareladas pelo esquecimento. Fontes serifadas e tipografia de época anunciavam em português arcaico as novidades de 1930, 1940, 1950. Uma lista manuscrita era preenchida com rigor militar por Lani Romée, tão logo outra notícia ou nota de rodapé, invisível e desimportante para o homem médio, lhe reclamasse a fanática cortesia.
Majestosamente atronado em outro lado da mesa, Betinho explorava o labirinto da rede. Trafegava rapidamente pelas vias do córtex virtual, os ágeis dedos decifrando o arcano de uma fonte latejante de informação. O menino era habilidoso conhecedor dos enigmas tecnológicos, um traço adquirido e apoiado por sua extinta família. Desde que fora salvo por Lani, não permitiu-se chorar mais nenhuma vez. Com a mesma idade seu protetor também perdera a mãe, com apenas uma vida de diferença: sobre seus ombros não recaíra o fardo da vingança. Era livre.
Grandíloquo que estava no embrenho de sua tarefa, Betinho foi incapaz de conter a vértia de um bocejo. Aquele sinal entornou-se como rebate aos ouvidos aplicados de seu mestre, que repousando a caneta, sugeriu:
"Vamos descansar." - acendeu um cigarro - "Eu sei que esse trabalho é chato, mas eu fiz isso a minha vida inteira, estou acostumado. Se você quiser pode mexer naquele programa bobão de fazer RPG."
"Eu quero ajudar" - desculpou-se - "mas é que cansei de tanto treinar hoje de manhã..."
Lani compreendia as dores do menino. Aqueles meses de convívio foram em suficiência para estabelecer um rijo vínculo entre os dois, pois conquanto outrora fossem distantes vizinhos, naquele momento aceitavam-se irmãos. Os laços criados pelo afeto plenamente divorciado de títulos sanguíneos são aqueles mais agraciados pela mais autêntica e inquebrável disposição, tal qual era o presente relacionamento. Eram Abbé Faria e Edmond Dantés.
Betinho observava as oníricas formas que as baforadas de Lani rabiscavam no ar. Imagens sinuosas, sedutoras, a dançar em intermitentes intervalos rumo ao puro extinguir de um breve e trêmulo fim. Inquiriu:
"Lani, por que você fuma? Fumar faz mal."
"Você tem razão, fumar faz mal, não fume e coma todas as verduras."
"Estou falando sério, esse negócio de fumar não tem benefício nenhum! Os principais riscos à saúde relacionados ao tabagismo se referem às doenças do sistema cardiovascular, sendo o tabagismo um fator de risco importante para infarto do miocárdio (ataque cardíaco), doenças do trato respiratório como a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC) e enfisema, e câncer, particularmente câncer de pulmão e câncer de laringe e boca."
"VOCÊ TÁ LENDO DA WIKIPÉDIA"
Talvez em respeito aos protestos, talvez saciado, Lani apagou o cigarro.
"Já vi que não vamos a lugar nenhum com essa pesquisa essa noite, então acho que posso te contar como comecei a fumar.
Eu já tinha meus dezoito anos. Dos doze até aquela idade eu tinha feito umas besteiras desimportantes na vida, como liderar as ações ostensivas da OTAN em Kosovo, ou impedir que aviões de Bin Laden acertassem o Palácio do Planalto, a estátua da Liberdade ou o MASP. Claro que como eu era menor de idade não podia ficar falando dessas coisas por aí, menor de idade não é plenamente capaz para os atos da vida civil, a lei não apoia a legitimidade da criança, iam querer me adotar. Fiquei quietinho.
Enfim, era ano de alistamento militar e fiz minha parte, me alistei na Marinha e obviamente fui convocado. Optei pela Marinha porque poderia me auxiliar a desenvolver técnicas anfíbias de combate, já me preparando para a derradeira batalha final com meu pai. Planejei tudo: Virar fuzileiro naval, depois servir em submarino, me unir à flotilha amazonense... Queria fazer carreira militar. Acontece que uns empedernidos, uns vigaristas, uns indolentes, mandriões, uns invejosos de uns almirantes aí ficaram todos ui ui porque eu era muito mais competente do que eles em seus respectivos serviços. Acabou que eu fui parar na cozinha do navio.
Por pura fortuna, aquilo foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido. Meu superior imediato, Tião, era o único outro servente da cozinha e nos tornamos amigos. Irmãos, na verdade, como eu e você - Tião era um homem robusto, preto como esse buraco do seu dente, barba e cabelos ralos, crespos, brancos. Apesar da aparência bestial era muito bonachão e polido. Um batalhador da vida, verdadeiro guerreiro da instrução, cavalheiro das armas: Ensinou-me a elegante arte de Auguste Escoffier, a haute cuisine; treinou-me na nobre arte do pugilismo inglês e tornou-me a imagem do boxeador de Quirinal; passou para mim os fundamentos da refinada caligrafia chinesa; ensinou-me a ensaboar e escovar o chão como ninguém. Mas a maior de todas as lições é essa que eu passo pra você agora:
'Lani, suncê tem qui di sê dos bão. Suncê tem qui di sê dos herói, rapai. Di bandido e di vilão o mundo já tá di bastante.'
Essa é uma lição que eu jamais abandonei, nem quando Tião morreu no curso de nossa busca conjunta por Saddam Hussein em ad-Dawr, perto de Tikrit, quando fomos cercados por homens-tigres muçulmanos. Meu mestre foi morto em ação, mas valente que era não se permitiu cair antes de derrubar o último dos monstros espadachins. Essa espada que carrego, aliás, é a cimitarra que Tião roubou de um dos nossos inimigos no decorrer desse mesmo combate, e que usou para decapitar o último deles. Graças aos seus esforços, créditos que não tenho coragem de tomar para mim, consegui finalmente achar aquele comunista cretino num buraco."
Um silêncio sepulcral instalou-se imediatamente, como se fosse o intervalo entre os atos de uma peça shakespeariana. Nada se disse por alguns discretos minutos, quando as mãos de Lani tatearam no escuro em busca de algo. Encontrou-o e acendeu-o, deixando escapar uma espessa bolha de fumaça.
"Ok..." - interrompeu Betinho - "... E quando entra a parte em que você justifica o vício?"
"Oras, eu estava na Marinha. Se você é da Marinha e não fuma, você é bicha." - e, dando outra baforada - "No dia que Lani Romée for um homossexual, será o dia que..."
A bravata cessara-se, os olhos devoravam aflitamente um abscôndito recorte que a esmo escapara sua consideração. Sem evadir-se de sua nova descoberta, pôs o dedo em riste frente o semblante de Betinho e vociferou:
"Betinho, vá arrumar suas malas. Eu o encontrei... Meu pai está no caribe!" CAPÍTULO V: Atos dos Apóstolos - Spoiler:
As horas transitaram com atropelada locução. De manhã desembarcavam no aeroporto internacional de Punta Cana, República Dominicana, recebidos com calorosas deferências do merengue cantado por ninguém. Na dissimulação de Hedda Gabler de Ibsen, em trotes pesados que lhes definiam a abordagem melancólica do encargo à frente, rumaram oeste com destino canônico.
A carência de transporte pessoal não foi empecilho perene. A destreza relaxada de Lani logo produziu meios viáveis, se não confortáveis, para o arrostamento do longo périplo por vir: Apoderou-se de uma motocicleta em pristinas condições, violentamente arrancadas do punho de um menino de doze anos, por certo jovem demais para ser o dono legítimo da máquina. O rapazola ainda tentara, por meio de bravatas e demais atitudes fanfarrãs, escapar à rapina e reaver seu pertence: um tapa certeiro em sua orelha e pôs-se a chorar copiosamente.
Desenharam monótono trajeto a seguir a costa da ilha, parando para descansar e comer duas ou três vezes. Quanto mais se aproximavam do seu destino, mais evidente o poder do mal contra o qual marchavam; árvores retorciam-se e definhavam, a terra rachava em sinuosas confecções, os céus reclamavam a escuridão mesmo sem ameaças de precipitação. A densidade matemática de desmortos aumentava exponencialmente, fato esse que, ainda que jamais admitissem, começava a enlamear as convicções dos destemidos mártires.
Ao fusco da noite por fim alcançaram a fronteira do Haiti, a qual atravessaram sem demais delongas. Ao arrebatamento de idéias juntava-se a curiosidade. Com toda a certeza conheciam apenas o paradeiro provável do Boto Cor-de-Rosa, um laboratório industrial escondido na região interiorana do país. Após mais longa jornada, cuja duração restava incalculável frente à sombria semelhança entre dia e noite naquela terra da perversão, passaram a confiar apenas em suas pernas. Não era oportuno anunciar a sua presença com trombetas da ira Divina.
Descansando em um moderado planalto que outrora limparam da desagradável presença de zumbis, comiam rações de viagem e faziam o inventário intelectual. Não foi possível trazerem as espadas pois a alfândega mantinha rigoroso código contra armamentos de qualquer natureza. Todavia, não tiveram problemas em fazer uso do Kung Fu e do Boxe com igual sucesso. Restavam as duas figuras silenciosas, lacônicas, a expiar os demônios da dúvida por meio de meditação.
Betinho é o primeiro a falar:
"Mestre, você percebeu que tem muito mais zumbi aqui do que em São Paulo? Lá em casa tinha tipo uns dois pra cada pessoa, mas aqui parece o samba do peru doido. Tem zumbi em todo canto. Hoje de manhã eu abri a minha mochila e saiu um zumbi de dentro. Aí o tênis começou a incomodar à tarde, tirei, fui ver se era pedrinha e não era, era outro zumbi."
Lani coçou o rosto cansado e comentou entre os dentes:
"É, percebi. Tem muito mais aqui, alguns lugares nem dá pra andar porque você acaba pisando no pé de um, tem que pedir desculpa, ser educado, aí fica chato porque você tem que matar depois."
"De onde vem tanta porcaria? Ouvi falar que na Rússia não tem."
"Onde viu isso?"
"Eu vi no Wikipédia."
Lani admitiu a resposta como satisfatória. Acendeu um cigarro. Betinho reclamou.
"Você tem que parar de fumar."
"Lembro quando vi meu primeiro zumbi." - disse Lani, ignorando os protestos - "Tinha acabado de cumprir o tempo mínimo exigido pela Marinha quando resolvi deixar a carreira militar. Eu até pensei em pedir demissão antes, xingar o capitão, passar pelo processo penal do código militar, ir embora de uma vez... Mas homem que é homem não faz isso. Minha mãe ensinou que homem de verdade tem que respeitar o itinerário militar, é isso que define se ele merece as calças ou não. Então eu respeitei e saí de consciência tranquila.
Aí eu viajei pelo país de ponta a ponta, andando com o pé direto na terra pra aprimorar o Kung Fu. Em meu trilhar pelo caminho do guerreiro, levando comigo apenas as roupas do corpo, ajudei a população carente, auxiliei o plantio de subsistência de pequenas comunidades, matei uns coronéis sem vergonha que instituiam voto de cabresto, derrotei uns dragões tiranos metidos a filósofos, desbanquei gangues de ninjas, desviei enchentes, vendi chiclete no farol, essas coisas normais que todo mundo faz. Até o dia que cheguei na cidadezinha de Corrente no Piauí.
Os moradores locais estavam aterrorizados pela lenda de um tal 'Vampiro de Moca', o chupa-cabras. Ninguém queria sair à noite e todo mundo tinha medo. Resolvi investigar e era um zumbi. Na hora não acreditei, claro, quem acredita em zumbis, zumbi é coisa de ficção, de filme do Romero. Mas lá estava o desaforado, gemendo e andando e comendo gente. Matei e pensei que era o fim.
Mas não era, hoje a gente sabe, porque os zumbis começaram a surgir pelo Brasil inteiro. A Globo, não sei se você lembra, começou a noticiar que o ministério da defesa acreditava ser um ataque biológico. O Pânico na TV acusou os bolivianos, o reporter Vesgo e o Silvio foram até zuar o presidente boliviano, achei sacanagem. O Datena disse que só podia ser coisa de bandido da favela, do PCC, do Comando Vermelho. O Mainardi teorizou que pudessem ter vindo nadando dos hermanos do norte.
Olhando o jeito que as coisas estão por essas bandas, acho que o Mainardi até que acertou."
Betinho colocou-se a digerir o relato, o refletir tempestuoso a se adequar às tribulações das circunstâncias. Em seu seio familiar, o círculo próximo, não se discutia as condições daquela praga, tão pouco se buscava o conforto científico: Havia apenas conformismo amuado, o sentimento comum do brasileiro de não indagar o motivo de suas graças ou a falta delas. O importante era sobreviver, ainda que mal.
Analisou a grande metamorfose de sua filosofia. Quando outrora, como menino, ainda pensava apenas em escapar de seus obrigações curriculares e divertir-se com programas de computador, hoje julgava-se homem. Vivera e crescera muito em tão pouco tempo, e sentia-se leve como se a um passo do Nirvana. Abençoado era seu estado de espírito, a se comparar com o próprio príncipe Siddharta, uma elevação incorpórea tamanha que torna-se inviável sua tradução em meras palavras do léxico de Camões. Apesar da morte de seus pais, da ruptura de sua infância; apesar das agruras e castigo suportados, do amargo na realização de uma vida suprimida... Naquele breve momento era feliz.
Sem que Lani percebesse, coçou uma ferida suportada àquela tarde. Fora mordido. Mesmo em sua inocência de menino, conformou-se com uma conclusão digna do mais culto discípulo do mal du siècle. Já estava morto. CAPÍTULO VI: Deuteronômio - Spoiler:
"Eu tenho certeza que ele está por aqui. Conheço esse cheiro, é cheiro de filho da puta."
Lani mantinha-se resolvido, andando por sobre os corpos já inertes da última horda de zumbis. Seus cálculos mentais asseguraram-no de que haviam percorrido e investigado cerca de metade daquele laboratório. Não havia sinal de trabalhador ou cientista humano, mas o encontro com gangues de desmortos era frequente e transformava a busca em uma tarefa exaustiva.
Perdido em seus anseios de vingança, Lani não havia ainda percebido a fraca disposição de seu discípulo. Betinho encontrava crescentes dificuldades em seus calcares, relutância involuntária que se mostrava mais evidente durante os difíceis combates. Suava abundantemente e a fadiga queimava seus ossos: Sentia-se febril, tonto e inebriado. Tais sintomas da perversa enfermidade manifestaram-se de súbito quando o menino, ao acompanhar o mestre no desbravamento de um amplo saguão, dolorosamente vomitou sangue e pus nas próprias roupas.
"Betinho?" - Lani prontamente veio ao seu auxílio - "O que você tem?"
O menino dispensou a mão estendida do mestre com um brusco sinal. Ao tentar colocar-se em posição ereta acabou por revelar a ferida no calcanhar, um agouro que congelou qualquer resposta imediata do filho de Valentina: Seus olhos chocados eram vitrines da mais casta expressão de terror. Antes que fosse possível qualquer tentativa de nova interação, perceberam-se cercados por cinco formidáveis mercenários de famigerada reputação: Homens-tigre muçulmanos.
Ainda que desprevinidos, os dois mártires lutavam ferozmente tais quais soldados da bandeira Manchu. Os cinco homens-tigre comportavam-se como alcatéia organizada, não atacavam um por vez nem todos juntos, mas coordenavam seus movimentos em busca de maior aproveitamento de brechas na defesa de suas vítimas. Eram guerreiros inteligentes e aliavam a técnica marcial com os preceitos islâmicos, o que os tornava temorosos oponentes.
Lani mostrava a preocupação com o discípulo: Mesmo quando conseguia avaliar uma abertura para o eventual coup de grace, preferia optar por um curso de ação defensivo para proteger Betinho, que por sua vez sentia dificuldades em manter o ritmo das manobras. Por fim, em um movimento inspirado pela paixão de Leônidas, o mestre rachou o crânio de três dos homens-tigres com uma rápida sucessão de jab jab cruzado.
Agora desestabilizados, os dois últimos homens-tigre adotaram tática agressiva. Alternadamente cruzavam garras para desferir ataques violentos que eram aparados com vigor por mestre e discípulo. Em um instante de perspicácia, um deles avançou em direção a Betinho e rasgou-lhe o estômago: Vísceras saltaram do corpo do menino, que bravamente utilizou a oportunidade para arrancar a cabeça do oponente com uma cotovelada brutal. Antes que Lani alcançasse-o para prestar socorro, em um movimento retorcido a imitar o salto de um corvo, Betinho repartiu o torso do último homem-tigre com um sanguinolento Flashkick.
O abatimento do último vilão foi o gongo a anunciar o fim das forças do valente discípulo, que largou-se no chão a esperar pela morte. Logo Lani ajoelhava-se ao seu lado, a indignação tamanha a lhe envenenar a alma, e colocando a mão sobre os olhos do irmão de mentira, enfatizou, a voz rouca:
"Você devia ter me dito."
"É, devia..." - riu tristemente Betinho, a saliva a escorrer pelo canto da boca - "Mas você teria me impedido de vir e isso eu não posso suportar. Homem de verdade tem que respeitar o itinerário militar, é isso que define se ele merece as calças ou não." - Depois de uma breve pausa, completou - "Melhor assim. Melhor morrer como herói do que morrer como um monstro."
"Eu não devia ter te trazido, você não estava pronto. Errei, me perdoe."
Nesse momento Lani sentiu a mão sobre os olhos de Betinho empapar-se de lágrimas, que disse aos soluços:
"Não fale isso!! Não fale isso!! Foi uma honra você ter me considerado bom o suficiente para te ajudar nessa campanha... Por favor, não tire essa glória de mim!!"
Lani respirou fundo. Não tinha mais lágrimas de tristeza para derramar, mas seu próprio espírito parecia desmanchar-se.
"Está certo." - desculpou-se. Apesar de inicialmente transtornado, Lani agora contaminava-se com o nobre estado de espírito de seu aluno. Nunca havia presenciado ninguém morrer embalado de tamanha aura de paz. Sentiu orgulho, e resolveu não lamentar o evento, mas celebrá-lo com os louros que Betinho de fato merecia.
"Lani?"
"Diga lá."
"Meu sonho mudou."
"Mudou?" - Lani fora pego de surpresa - "E qual é agora?"
"Meu sonho... É que você pegue o cretino do seu pai. E pare de fumar."
Riram juntos, sem motivo, expiando todas as dores e mágoas passadas. Riram pensando no primeiro encontro, nas duras sessões de treino, nas histórias compartilhadas. Riram juntos até que eventualmente só se ouvisse uma das tristes risadas. CAPÍTULO VII: Revelações - Spoiler:
Como a mais inexpressiva escultura em carrara, a compostura embalada pelos fios de linho a desenharem o terno branco, observava com curiosidade quem ousava procurá-lo. Exalava a mais casmurra das graças, perdidas em um semblante taciturno, os olhos carentes do brilho da vida que narravam contos de vitórias pírricas. Eis que era o senhor do microcosmo, personagem onipotente na fábula de sua própria história. Era o Boto Cor-de-Rosa.
Não converteram verbos pois destes estavam além. As duas figuras transpiravam suas virtudes, conscientes da manifestação recíproca; o arcano decifrado em suas imaterialidades conhecia a imagem modulada que percorria o ânimo de cada um deles: tateavam cada qual em sua pessoal abstração cognitiva o descuido do oponente, em uma terra de ninguém compartilhada pelos gritos de um embate etéreo tão verdadeiro quanto se estivessem a dividir açoites de flagelo.
Faz-se impossível determinar em que fiel momento cerrou-se o primeiro punho e desferiu-se o primeiro soco. As percepções daquele duelo confundiam-se com a mais cortante palavra de Théodore Botrel, o movimentar da poesia que não derramava tinta de sangue, mas de orgulho. Intensificavam-se na serenidade de bailarinos a discursar as vanguardas oníricas da voz que brada no deserto; o torque trôpego desviado como as águas que laboram o poder das engrenagens; guerreavam na elegância e dignidade de dois maestros a reger sonetos na expectativa do fracasso.
Como se das pristinas páginas de um livro sorvesse a erudição, Lani compreendeu que aquele limiar era o âmbito de ensaios da mais pestilenta natureza: A mesma arena que acolhia a improvisada coreografia de vingança era o leito que parira as abominações que então vagavam a terra, a corromper os preceitos de Jeová que retirou dos homens o direito à vida eterna ao custo do conhecimento do bem e do mal.
A equação deôntica vociferava o dever que o filho de Valentina jamais requisitara, mas que agora admitia sob sua responsabilidade. Não bastava alimentar-se apenas do gelado banquete da vingança: a ele também fora incumbido o fardo de trazer aos inimigos das boas novas o fim que lhes era justo, o término da loucura em forma de terror imortal.
Concentrando todo o seu caráter no gládio de sua força de vontade inquebrantável, Lani desequilibrou a delicada simbiose marcial que o vinculava ao Boto e prosseguiu a enviar em cada um de seus sucessivos assaltos um caractere de sua lenda: Explicava a cada novo ataque os segredos de sua motivação, os hematomas de cada perda, as cicatrizes e memórias de árduas lições, a soletrar um livro abandonado pelo próprio autor.
A própria ilha gritava e se contorcia a aprender a história do herói. Cada golpe uma nota a contribuir na composição de devastadora sinfonia de convulsões da natureza: Por toda a terra haitiana se espalhava o cânone de Lani Romée, a rugir e retumbar como declaração de guerra às abominações desmortas. A geografia se contorcia, a arquitetura esmigalhada, os falecidos deixavam de caminhar. Foi-se,então, o epílogo da ameaça zumbi.
Ajoelhado, desamparado na vergonha da derrota, o Boto cantou:
"Misericórdia..... Eu falhei, eu falhei."
Lani suspirou como se fosse essa a última lufada de ar a presentear seus pulmões. Sentiu que toda a sua flagelante jornada se justificava ao dar a facada no peito, a mordida na orelha, o murro na fuça, a rasteira baiana e o pontapé no fígado do descarado do Boto. Nos portões da morte, seu pai novamente deixou escapar o sorriso que estampara sua face no funeral de Valentina, mas que agora, em meio a luz, não parecia sinistro: era em realidade um sorriso de orgulho. O orgulho paterno que nunca experimentara.
Sentou-se no chão, o intelecto enfim leve, e retirou do bolso o maço de cigarros. Estava amassado pela ação do duelo e do terremoto que causara, mas um cigarro saltava da caixinha, sedutor. Prometera a Betinho nunca mais fumar, e tinha toda a intenção de manter a palavra. Encarou novamente o maço de cigarros, pensativo.
Quando se encara demais o abismo, o abismo encara de volta.
Puxou um cigarro e acendeu. Talvez não fosse aquela a mais nobre de suas atitudes, mas estava convicto de que um dia deixaria o vício. Mais importante do que isso, decidiu que agora tinha tempo para descansar e fazer do primeiro dia do resto de sua vida o que lhe fosse oportuno. Era homem livre. Decidiu que a essência de uma alma pura como a de seu discípulo vivia também no ânimo de tantos outros espalhados pelo mundo. Decidiu que o que estava por vir era um capítulo aberto - Graças aos esforços de Betinho, créditos que não tinha coragem de tomar para si, conseguira realizar seu sonho. Mas agora estava preso a uma dívida.
Frente à própria inabilidade virtual, desejou administrar uma sociedade onde qualquer um, de qualquer origem, filosofia ou credo, conquanto manifestasse o desejo de realizar o mais bobo dos sonhos, dispusesse de meios para concretizá-lo. Uma sociedade de irmãos como ele e Betinho foram: não impessoal, falsa ou fria, mas humana, a dividir anseios e dores, lições de amizade, felicidades genuínas, descompromissadas risadas, e, definitivamente, os seus sonhos mais bobos. Até mesmo se estes forem sonhos tão bobos quanto fazer joguinhos como Breath of Fire ou Chrono Trigger.
Soltou fumaça pelas narinas e sorriu, os olhos fixos no horizonte laranja.
"É. Quem sabe?" EPÍLOGO- Spoiler:
"Boto."
"Fala, Val."
"Eu estava pensando."
"Em que?"
"No que vai ser do nosso filho."
"Ué, como assim?"
"Bom, você vai ter que voltar aí pra reassumir seus deveres militares na marinha de Botolândia. Ele vai crescer sem pai. Vou ser a Mama África, vou ser mãe solteira. Mãe solteira é mal falada, você sabe, as pessoas comentam."
"Não fala besteira, Val... Eu já prometi que eu volto, pô."
"Mas você não sabe quando."
"É, não sei... Mas eu posso fazer uma estimativinha, vai. Nosso serviço militar é bem severo e pode exigir até trinta anos de serviço, mas pensa comigo: eu já servi dezoito. Os botos normalmente são liberados lá pro vigésimo, vigésimo primeiro. Daqui dois aninhos tô de volta, por aí."
"É, e como fica até lá? O moleque cresce sem pai, fica amargo, você volta, ele não te reconhece, fica revoltado, começa a gostar de metal melódico. Você desgraça nossa família, Boto, você desgraça nossa família!"
"Pára de falar abobrinhas, Val, o menino vai ter o que? Dois anos? Não vai nem saber amarrar os sapatos sozinhos. Eu sei bem porque como botos não usam sapatos essa é uma técnica bem difícil pra gente. E ele é meio botinho."
"Espero que não, se ele nascer rosinha eu te mato, seu vagabundo."
"Mata nada, você seria incapaz disso."
"Não me testa."
"Não mata."
"E tipo... A maioria pode até ficar vinte anos em serviço, mas e os que ficam trinta?"
"Ah, esses caras tem que ser bom, tem que ser coisa fina. Mas não é meu caso, eu sou mó meia-boca."
"Você é mesmo."
"É."
"Se fosse boca inteira largava essa vida de milico e vinha ficar comigo e pronto."
"Não dá, isso eu não admito não. Isso aí é coisa de depravado, de bunda-mole, homem que é homem honra suas obrigações militares até o fim, não fica inventando desculpinha pra não fazer o que deve, tem que pagar a dívida, é coisa que só homem entende, você não vai entender. Eu não sou machista, longe de mim, sou um cara muito século XX, mas com todo o respeito e perdão da palavra, eu te amo muito, Val, mas vocês só entendem dessas coisas delicadinhas de mulher, dessas coisas bonitinhas, meigas, tipo Kung Fu."
"Você prefere a frota botolandesca ao amor da sua vida."
"Prefiro."
"Eu sei, você é um bosta."
"É brincadeira, Val, pô, que que tem, só tó brincando. Eu prefiro você."
"Mas vai embora, vai me deixar aqui prenha sozinha."
"Mas assim que eu voltar eu prometo que a gente vai ficar juntos pra sempre."
"Pra sempre quanto tempo?"
"Até você morrer, claro."
"Aí você vai chorar?"
"Vou."
"Mas aí não é pra sempre, é só até eu morrer."
"É, mas então faz como?"
"Botinho... Você já prometeu que a gente vai ficar juntos pra sempre. Se eu morrer você se vira, promessa é promessa."
Deram uma risada gostosa de apaixonados bobos, abraçadinhos sob a luz da lua daquela madrugada, contemplando o futuro feliz que certamente estava por vir...
Última edição por Lani Romée em Qua Mar 30, 2011 1:45 am, editado 43 vez(es) |
| | | BBeast Subtenente
Ocupação : Cervejeiro
Registro : Besta : Humanóide : Pirata 15 / Bebum 8
| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada Dom Fev 07, 2010 7:40 pm | |
| Sublime, é fácil de perceber que aí está apenas o início da história da vida de um verdadeiro batalhador! |
| | | IDrownFish Soldado
| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada Dom Fev 07, 2010 7:45 pm | |
| O texto é sensacional. O bom uso figuras de linguagem, associado à sinceridade do autor, torna esse texto uma das obras primas da Hacred Sall.
O misto de calma e melancolia que invade a cabeça do personagem, que contemplativamente esmaga cabeças de zumbis enquanto reflete sobre sua situação precária, foi suficiente para me manter preso a esse conto genial.
Eu sentia a angústia e o medo encrustados na mente de Lani Romée como se a mente fosse a minha própria; a cada osso quebrado, a cada cabeça dividida em dois, meu coração palpitava mais fortemente.
O conto, evidentemente 100% real e livre de exageros, me fez refletir sobre a realidade cruel que assola o nosso país hoje em dia, com hordas de zumbis famintos atacando vilas e bebendo o sangue de crianças, sangue este que torna nosso pôr-do-sol tão vermelho.
Hoje dormirei melhor, pois apesar de esse conto não ter tido a capacidade de me fazer esquecer a palavra Tetris, pelo menos não mais me sentirei angustiado quando zumbis canibais e monstros disformes tentarem deletar o database da Hacred Sall. Não. Estamos todos protegidos.
Obrigado Lani, por ser um escritor fabuloso, um Rambo sensacional e um admin tão bom. Mas acima de tudo, obrigado por me lembrar que no mundo existe esperança, e que por mais escura que a madrugada seja, o Sol de Toda Manhã ressurgirá no horizonte, com o objetivo único de nos protejer e guiar. |
| | | Lani Romée Major
Registro : Lanisso : Humano : Bard 7 / Playwright 7 / Boxer 5 / Iron Chef 5 / Ace Attorney 3
| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada Dom Fev 07, 2010 9:05 pm | |
| Não faço nada além da minha obrigação, pessoal. Não destruo o mal como forma de obter reconhecimento: Não, pois minhas intenções são nobres. Mesmo assim, é reconfortante saber que possuo o apoio de meus amigos e admiradores. Lembrando sempre do meu compromisso com a verdade.
O capítulo II está no ar. |
| | | Matt RvdR Capitão
| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada Dom Fev 07, 2010 11:36 pm | |
| STUPENDO!
E viva os botos cor de rosa, sem eles jamais teríamos os caçadores de zumbis em nossa cultura nacional. ^.^
Com licença, vou lá jogar tetris. : ) |
| | | Lani Romée Major
Registro : Lanisso : Humano : Bard 7 / Playwright 7 / Boxer 5 / Iron Chef 5 / Ace Attorney 3
| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada Ter Fev 09, 2010 5:10 pm | |
| |
| | | IDrownFish Soldado
| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada Ter Fev 09, 2010 5:55 pm | |
| O capítulo dois é excelente. Percebemos que Lani, apesar de ser um exímio espadachim, um músico excepcional, um conhecedor da culinária, um caçador de zumbis e um administrador sensasional, também tem seus problemas.
Descobrimos mais sobre a angústia que o consome toda noite, que o impede de respirar sossegado durante as lutas brutais pela sobrevivência. A ferida profunda, que talvez nunca cicatrizará, é causada pela ausência da figura paterna (e talvez agravada pela incapacidade de se fazer um slap que preste em um baixo semi-acústico). Entendemos que o Lani perfeito que conhecemos também tem um lado emocional, frágil, humano.
O capítulo três é denso em sua leveza, é excepcional em sua normalidade, é sincero em sua hipocrisia...
Bem, você entendeu o que eu quis dizer.
Gostaria que você soubesse que eu e todos os outros membros da Hacred Sall te apoiaremos até o fim em seu trabalho autobiográfico. É bom para todos saber como se formou a personalidade desse Lani do qual tanto gostamos. |
| | | Lani Romée Major
Registro : Lanisso : Humano : Bard 7 / Playwright 7 / Boxer 5 / Iron Chef 5 / Ace Attorney 3
| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada Ter Fev 09, 2010 7:42 pm | |
| Acho oportuno agradecer novamente esses votos de simpatia de meus admiradores, súditos, amigos e irmãos de armas. Sinto que, a cada capítulo revelado, um pedaço de mim estará para sempre arraigado a essência dos leitores que tanto estimo. São conifssões que jamais pude fazer antes, mas sinto-me íntimo o suficiente para me libertar desse castigo persistente que, hoje, tenho a audácia de enfrentar com a ajuda de vocês.
Capítulo IV, V, VI e VII aí! |
| | | Lani Romée Major
Registro : Lanisso : Humano : Bard 7 / Playwright 7 / Boxer 5 / Iron Chef 5 / Ace Attorney 3
| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada Qua Fev 10, 2010 7:16 pm | |
| Bom, galera, ta aí o epílogo que fecha toda a trama desse meu épico auto-biográfico. Espero que tenham gostado da leitura porque com certeza foi um porre escrevê-la. |
| | | Dattz Major
| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada Qui Fev 11, 2010 10:45 am | |
| Emocionante, D:. Spoiler, não leia se não terminou o texto. - Spoiler:
Então a HS só existe por causa de Betinho?... Pena ele ter morrido, parece que ele seria um bom membro, :/. Tão maduro já com doze anos. E isso sem beber garrafas de whiskey, ou roubar motos. Fico feliz por saber mais sobre sua vida, Lani. Agora eu admiro você por ter acabado com a ameaça zumbi que cobria nosso mundo. Duvido que outro administrador de fórum tenha lutado contra eles, :/.
|
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| Assunto: Re: A Lua de Cada Madrugada | |
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